Chechênia, o dia em que me trai

Quando o descuido e a ingenuidade podem se transformar em um ato inconsequente
Por Raí Souza Vieira de Oliveira

Há pouco mais de um mês, recebi um convite de agentes intermediários para participar de um jogo na Rússia, país sede da Copa de 2018. O evento marcaria a inauguração de um estádio e jogaríamos contra a equipe local, que tem Gullit, ex-jogador holandês, como treinador.

No meio da minha correria, e com meu sócio (que é responsável por conduzir estas negociações) em férias, aceitei a proposta, se tudo estivesse confirmado e pagamento realizado 10 dias antes da viagem. Confesso que a falta de informação e cuidados, confirmam minha imprudência nesta operação.

Meu ingênuo raciocínio foi o seguinte: já estaria na Europa, onde participei do Global Sports Forum em Barcelona. Então, daria um pulo na Rússia, faria um joguinho, encontraria antigos amigos e ainda ganharia uma graninha.

Sinceramente, minha decisão não foi motivada pelo ganho financeiro. O que recebi não muda em nada a minha situação econômica. É o equivalente a pouco mais do que cobro para ministrar uma palestra de 2 horas na cidade de São Paulo. É também menos do que doo, com certa frequência, para projetos orientados pelo respeito aos direitos humanos.
Alguns dias antes da viagem, ainda na correria, recebi a notícia da mudança do jogo da Rússia para Chechênia, o que me causou estranheza. Sabia de uma terrível guerra entre separatistas chechenos e as forças armadas russas. Mas, segundo informações, a situação já estava menos violenta há algum tempo.

Tentei me informar um pouco mais sobre o presidente daquela república. Talvez não tenha buscado com a profundidade que deveria. Porém, optei por ir e honrar o compromisso assumido.

O que aconteceu, no entanto, foi que fiz parte de umas das coisas que mais condeno na vida e com a qual mais tenho cuidado: participei de um evento escancaradamente político, populista, em um contexto desconhecido, sem saber as possíveis consequências e intenções.

Tenho certeza, e os movimentos atuais no mundo árabe mostram, que hoje um jogo de futebol com alguns ídolos não mudará convicções ideológicas, mas, o resultado dessa escolha está em mim. Me senti mal por ter sido inconsequente, e não criterioso como sempre costumo ser. Quando percebi o tamanho do risco, após o jogo, minha vontade foi de esconder-me de tudo e todos, inclusive de mim mesmo.

Até então, do encontro no aeroporto até a chegada em Grozny, capital da Chechênia, tudo era uma grande alegria, pois o time de amigos estava novamente reunido. De imediato, vieram lembranças de tudo que passamos para chegar às grandes vitórias.

Mas o fato é que em Grozny o clima era militar: fotos gigantes dos homens que estão no poder, pouquíssima gente na rua. Algo muito estranho pra mim. Só depois, fiquei sabendo pela intérprete russa que 98% da cidade havia sido destruída durante a guerra. Imaginem as lembranças daquelas batalhas ainda vivas por ali. Ouvi também que algumas ONGs, acusam o governo de violação dos direitos humanos. Pelo que vi por lá, não me surpreenderia. Mas é muito difícil avaliar em um lugar tão traumatizado e ainda em extremo estado de alerta.

Chegamos em Grozny já no começo da tarde. Comemos e fomos ao teatro, em um dos prédios reconstruídos, para uma apresentação de danças típicas e música, também com uma atração internacional. Fomos recebidos de forma muito gentil por todos. Foi o único momento que me aproximei da população, que parecia bem. O público era, na maioria, formado por mulheres, em comemoração ao dia internacional da mulher, 8 de março. Muitas com seus celulares filmando tudo. Posso dizer que foi um momento agradável, pude sentir, mesmo que pouco, o lado humano daquela cidade que tenta se reconstruir.

Ficamos em um hotel com condições razoáveis, praticamente dentro do estádio do time da casa (que conta com vários jogadores brasileiros). No estádio, lotação máxima, com cerca de 15 mil pessoas, que cantavam o tempo todo.

Poucas horas antes do jogo, soube que o presidente e seus companheiros seriam nossos adversários. A única notícia boa era a duração do jogo: apenas 2 tempos de 25 minutos.

Os agentes pediram para “aliviar” um pouco, já que era apenas uma “brincadeira”. Realmente, apesar de Gullit e Matthäus estarem no time adversário, não tinha a mínima condição de fazermos um jogo competitivo. Além do presidente, havia outros que nunca tinham sido atletas de futebol. Foi uma pelada de quintal, mas o público parecia vibrante.

Placar a parte, desta imbecilidade (assim que me senti) cometida, ficam duas grandes lições: acompanharei de perto o processo político na Rússia/Chechênia; e estarei muito mais alerta a esses possíveis deslizes de avaliação (mesmo já sendo e tendo uma equipe muito criteriosa). Posso dizer que essa experiência serviu, ao menos, como um importante aprendizado.

Escrevo, porque da mesma forma e com a mesma intensidade que queria me esconder após o evento, necessito me expor e expor minhas fraquezas.